A quem estamos avaliando nessa pandemia?

     Hoje li rapidamente um título de uma reportagem compartilhada numa rede social. Dizia, mais ou menos assim: "Alunos da rede pública dizem que vão reprovar de propósito para aprender de verdade em 2021". Posso estar equivocada em algumas palavras, mas não no sentimento. Não lembro o que eu estava fazendo naquele momento, mas não tive tempo de ler a matéria e segui no meu trabalho. Só que não consegui largar esse sentimento...

    O que estariam sentindo esses estudantes que disseram tal coisa? O que estariam sentindo as pessoas que leram e concordaram com o tema? Mais uma vez, a fim de serem aceitos, a fim de pertencerem a algo, os alunos tomaram para si a culpa. Nosso alunos mais vulneráveis, aqueles que sofrem com tantas injustiças sociais, eles não esperam que o estado faça nada por eles, eles tomam o problema nas suas mãos e aceitam a injustiça como única opção. Esses estudantes tiraram da escola  e dos governantes o papel, o lugar e a necessidade de tomar uma decisão e assumiram que deveriam ser os únicos punidos. Afinal, quem são eles no grande esquema das coisas? 

    Não posso deixar de sentir uma imensa tristeza ao ler isso. Não me interessa o resto da matéria ou outros argumentos de autoridade que o repórter possa ter conseguido, eu fiquei arrasada só com o título, imaginem se lesse tudo?

    Tenho pensado muito sobre o tema da aprovação e reprovação durante toda a minha carreira na educação pública. Falo constantemente sobre isso nos meus canais, e respondo vários questionamentos. Até agora, estava ainda refletindo, mas essa leitura e esse sentimento me colocou em movimento de escrita. Sem dúvida, eu preciso dizer.

    Falo  para os professores e gestores escolares. O que vocês esperam dos seu alunos? Eu espero que saibam aprender, que compreendam o mundo ao seu redor com clareza e discernimento, que possam ser autores de seu futuro, que sejam felizes, que façam os outros felizes. E tantas outras coisas... Por outro lado, essa pergunta poderia ser respondida de tantos outros jeitos, jeitos que desumanizam, jeitos que diminuem, jeitos cruéis. Eu espero que meus alunos aprendam o que eu ensinar, espero que meus alunos respondam bem aos questionários, espero que eles não me incomodem, espero que eles sejam educados comigo, espero que eles entendam que tudo o que eu faço é por amor, espero que eles possam ser diferentes dos seus pais, espero que eles sejam melhores do que são hoje, ...

  No meio dessa pandemia, nós perdemos nossos alunos. Tentamos de todas as formas entrar em contato com eles, temos tido as mais diversas ideias, trabalhamos dia e noite, tudo para tentar chegar perto, mas muitos deles escapam por entre nossos dedos, diluem-se em algum lugar que não é conhecido por nós, existem quase que em outra dimensão. A escola, que era nosso lugar de encontro, nosso lugar de certeza e segurança não faz mais esse papel.

    Penso que este é um dos períodos mais triste que eu já vivi.

    Nesta semana, alguém me disse que estaria fazendo Conselhos de Classe com os professores da sua escola. Eu pensei? Que classes são essas que só existem no papel? Que ilusão é essa que construímos em torno da escola, a fim de manter uma realidade que foi estraçalhada por essa pandemia? Muitos dizem que estamos construindo um novo normal. Que novo normal é esse que já nasce carregando consigo práticas e sentimentos antigos que já não serviam antes, e agora muito menos. Quem somos nós que acreditamos que é possível fazer uma avaliação de um aluno e ainda, dar um julgamento de aprovação ou reprovação pelo whatsapp?

    Uma professora me encaminhou um áudio de uma mãe que disse mais ou menos assim: "Não se preocupa professora, o pai dela disse que ela não vai fazer essa aula por telefone, ela não tem paciência."

    O que eu posso dizer para essa mãe? Sinto muito, mas essa aula por telefone é o máximo que eu consigo oferecer agora.  Eu também poderia fazer um julgamento e dizer que essa mãe e esse pai não se importam com seus filhos, eu posso ter pena dessa criança por ter pais tão insensíveis, eu posso ficar brava com essa mãe, porque, afinal de contas, eu não tenho culpa de não poder ir para a escola e, de novo, mais uma vez, essa família deveria agradecer que a escola está se preocupando com ela e oferecendo uma aula por telefone. E também poderia dizer que, se ela não fizer essa aula por telefone, sua filha vai reprovar. Porque eu posso reprovar, eu sou professora, eu sou gestora, eu sou a escola e eu faço o máximo que eu posso e todos devem ser gratos.

    Então um dia, esses mesmos alunos, que estão sendo alcançados apenas por telefone, que sabem que não são a primeira escolha em política públicas, esses alunos tomam para si a responsabilidade e dizem: "tudo bem então, a gente reprova e em 2021 continua".

   Mais uma vez, eles vão ficar pra trás e nem vai ser nossa culpa, né. Até eles concordam que não sabem nada.

   Tenho certeza que não tenho soluções para os problemas de cada escola, nem tenho resposta para essas perguntas todas, porque não estou aí com vocês. Estou aqui no rio Grande do Sul, estou aqui na Adolfina. Mas, a condição de escola pública no une. Então, não somos alheios ao sofrimento uns dos outros. O que eu falo daqui da minha aldeia, também se observa no horizonte.

   Dizem que a humanidade vai sair melhor depois dessa provação. E a escola? Vai sair melhor? Não a escola como um todo, mas a sua escola vai sair melhor? Não toda a sua escola, mas você como profissional da educação, vai sair melhor?

    Volto a dizer que será preciso reinventar a escola. E que essa reinvenção está nas mãos dos professores, dos gestores, daqueles que caminham no chão da escola. Mas para que essa reinvenção aconteça, é preciso deixar de lado algumas certezas que carregamos conosco principalmente a respeito da avaliação.

    A primeira certeza é de que é possível avaliar a totalidade da aprendizagem de um aluno, mesmo na aula presencial. O que vemos é sempre um recorte aprendizagem de um todo que é o aluno. O que nós sabemos que ele aprendeu, não é totalidade do que ele sabe. E o que nós dizemos que ele não sabe, nem sempre é maior do que o que ele realmente sabe, mas nós nem perguntamos. A avaliação deve servir para entender o que o aluno sabe e tomar decisões para permitir que ele avance. Pra ser sincera, nunca devia ser feita sem a participação do próprio aluno, porque se ele não sabe o que conhece e o que desconhece, vamos deixá-lo no escuro. Na avaliação tradicional, o aluno está sempre no escuro. O que significa um 8, um 5 ou 3, se não sabemos os parâmetros da avaliação?

    Se é assim na avaliação presencial, está sendo multiplicado na avaliação pelo whatsapp. Reduzimos todo o processo educativo a fazer tarefas, que nós nem sabemos se o aluno fez ou não fez, porque nem estamos vendo ele fazer. Poderia ser o irmão mais velho? Se na avaliação presencial deixamos o aluno cego, nessa tentativa de aula remota que fazemos, estamos todos cegos. Mas, a nossa cegueira sobre a aprendizagem do aluno faz muito mais mal, porque nós temos o poder de aprovar ou reprovar. É a escola que dá a sentença. 

    Mas, então o que a escola pode fazer?

    Já estamos fazendo muito, tenho certeza. Nenhum professor está se escondendo do trabalho. Todos tem boas intenções e todos desejamos que nossos alunos tenham sucesso. O que precisamos entender é a NOSSA TOTAL IMPOSSIBILIDADE de garantir uma avaliação real da aprendizagem dos nossos alunos. Estamos todos no escuro.

    Aceitar essa impossibilidade não é a fraqueza de uma escola, mas a sua força. Vai ser isso que fará a diferença entre as boas escolas, as escolas que realmente enxergam os seus alunos daquelas que estão cumprindo um cronograma. As boas escolas vão encontrar força na diversidade, na empatia, no apoio mútuo. As boas escolas vão dizer que em 2021 irão olhar todos os alunos individualmente e perceber onde eles pararam. Estender a mão e seguir em frente. Não será necessário sacrifício voluntário de milhares alunos da escola pública que se sentem encurralados pela falta de investimento do Estado. 

    O trabalho em 2021 vai ser muito árduo para aqueles que sobreviveram a essa pandemia sem a  perda de ninguém amado, mas muito mais árduo para quem vai precisar seguir em frente na dor. A escola precisa ser um lugar que acolhe, não um lugar que multiplica essa dor porque ainda não conseguiu aceitar que existe muito mais dentro de um ser humano do que pode ser medido de 0 a 10.

    Estão enganados aqueles que acham que um conselho de classe no meio da pandemia vai emitir julgamentos sobre os alunos. Esse conselho vai dizer que escola é essa que vocês estão construindo. Para quem é essa escola? E essa resposta não me diz respeito, mas dá um recado para a sua comunidade. Quem são vocês, caros professores e gestores?

     

Comentários

  1. Joice, apesar de tantas dores e perdas nesse momento que vivemos, eu tenho enxergado também uma oportunidade, mais que isso, uma necessidade, de executarmos ideias que antes pareciam utópicas.
    Várias questões já discutidas teoricamente no campo da educação a fim de superar a prática tradicional disciplinadora agora parecem fazer ainda mais sentido e se mostram como caminhos possíveis. Diante dessa pequena parada no automatismo a que estávamos submetidas, podemos relembrar do que realmente importa, repreenchendo de sentido nossa prática. A partir do seu texto, reflito que a avaliação é um desses campos a ser reconstruído. Tomara que não percamos essa oportunidade para voltar a ser como antes. Obrigada pela reflexão e pelo trabalho por uma educação emancipadora!
    Yara.

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